Ela se tornou o destilado mais popular do mundo. Mas, bem antes
disso, derrubou o czarismo, foi arma política de Stálin e deflagrou o
fim do socialismo na Rússia. Tudo sem nunca deixar de ser o orgulho - e a
vergonha - de toda a nação.
por Felipe Van Deursen
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O líder mongol Tokhtamich não acreditou no que estava vendo. Seus homens
conseguiram sitiar Moscou, mas a cidade ainda não havia sucumbido. O
descuido dos inimigos moscovitas o surpreendeu. "Alguns rezavam,
enquanto outros pegavam hidromel dos depósitos dos boiardos e começavam a
beber. Bêbados, ficaram ousados e subiram nas muralhas", anotou. No
alto dos muros, começaram a xingar os oponentes tártaros. Ficaram dois
dias assim. Bebendo e ofendendo. Até que, totalmente desnorteados,
trôpegos e entorpecidos pelo álcool, acharam que a batalha cessara e
abriram os portões, enganados pelos inimigos à espreita. Os mongóis
saquearam e devastaram Moscou naquela noite de 23 de agosto de 1382. O
próprio Tokhtamich atribuiu a vitória à bebedeira. Os russos tombaram,
humilhados. A cidade foi queimada e milhares morreram.
Quase 7 séculos mais tarde, em 2011, o presidente Dmitri Medvedev anunciou um plano para quadruplicar a taxação sobre a
vodca
no país. O objetivo é não só aumentar a arrecadação de impostos sobre o
produto como também combater o velho mal do alcoolismo na
Rússia, onde a expectativa de vida é de 65,5 anos - menor até que a do pobre vizinho Cazaquistão.
Não é nem de longe a primeira vez que o governo se mete com o álcool. A
vodca
já foi monopólio estatal antes mesmo do socialismo. Acelerou a queda
dos czares. Escancarou a fragilidade do Partido Comunista da União
Soviética. Não importava se quem estava no comando era uma família real
ostentadora ou um punhado de burocratas corruptos. Havia
vodca na mesa. No trabalho. Nas manhãs congelantes. Quem ousou se meter com esse misto de orgulho e
vício nacionais dificilmente passou incólume.
PRIMÓRDIOS BÊBADOS
A
vodca
é uma bebida de centeio, batata ou trigo que surgiu no final do século
15 com a popularização da tecnologia de destilar, ou seja, separar
líquidos por meio da evaporação. A palavra "
vodca",
que evoca no imaginário algo forte, devastador, tem um significado
quase irônico em russo: "aguinha". Mas o termo só se firmou no fim do
século 19. Até então, tinha muitos nomes, como vinho de centeio e,
atenção para a poesia, lágrima de cereal. Nessa época, ela já havia
substituído havia muito tempo no coração e no fígado dos russos o
hidromel, a antiga bebida fermentada que levou à derrota frente aos
mongóis.
Em 1478, a
Rússia, que começava a nascer como estado nacional, tirou o domínio da
vodca
da Igreja e criou um rentável monopólio sobre o produto. Até as
tavernas pertenciam ao czar. No fim da década de 1850, 46% do orçamento
do governo vinha da bebida. Esse era o Império Russo, um lugar onde a
vodca dava mais dinheiro para o governo do que trens e ferrovias, o símbolo máximo da modernidade no século 19.
A época foi marcada também pelas mudanças implementadas no reinado de
Alexandre II. Dois anos antes de Abraham Lincoln acabar com a escravidão
nos Estados Unidos, ele libertou os 22,5 milhões de servos russos, em
1861. O czar lançou políticas econômicas mais progressistas e a
indústria cresceu. A produção de
vodca
não estava nas mãos do Estado, mas da nobreza. Esse contexto favoreceu o
fortalecimento dos primeiros grandes industriais do álcool, segundo a
jornalista americana Linda Himelstein no livro O Rei da
Vodca.
O mais famoso deles era o ex-servo Piotr Smirnov, criador daquele que é
hoje o destilado mais conhecido e consumido do mundo, a
vodca Smirnoff.
A bebida já estava estabelecida no cotidiano dos russos. Pedro, o
Grande, instituiu o gole punitivo em seu reinado (1682-1725), passatempo
em que os atrasados a uma reunião eram supostamente forçados a entornar
uma caneca de
vodca.
Àquela altura, os russos bebiam em negociações. Bebiam na colheita. Na
falta de dinheiro, pagavam em bebida. Subornavam em bebida. A mulher
entrou em trabalho de parto? Dê-lhe
vodca. O recém-nascido não para de chorar?
Vodca
goela abaixo que é para acalmar. E o governo estimulava isso. Mesmo com
o monopólio desativado desde o século 18, os impostos sobre o produto
rendiam muito aos cofres públicos. Um terço das despesas estatais,
incluindo todos os gastos militares em tempos de paz, era pago com o
dinheiro da
vodca.
Mas ela não era querida por todos. Pelo contrário. Além da Igreja, que
desde que perdera o direito de produção tornara-se uma ferrenha
opositora do álcool, havia grupos cada vez mais barulhentos que se
levantavam contra os males causados pela bebida. O movimento da
temperança crescia no fim do século 19 a fim de combater a já
mundialmente notória embriaguez russa.
LEI SECA
"A
vodca
é uma bebida incolor que pinta seu nariz de vermelho e enegrece sua
reputação." A frase é de Anton Tchekhov, um dos maiores autores russos
de todos os tempos. Outro gênio da literatura fazia coro à oposição
pública de Tchekhov à bebida. Filho de um alcoólatra, Fiódor Dostoievski
escreveu que "o consumo de bebidas alcoólicas brutaliza o homem e o
transforma em um selvagem". O outrora bêbado contumaz Leon Tolstoi
escreveu sobre os malefícios do álcool e criou, em 1887, a Liga Contra a
Embriaguez. Com o apoio de artistas desse porte, movimentos de
temperança ganhavam força na sociedade, especialmente após a morte de
Alexandre II, em 1881. Seu filho e sucessor, Alexandre III, não era tão
liberal e não podia ignorar a crise do alcoolismo. Ele sancionou novas
leis, como uma de 1885 que dizia que as tavernas só poderiam vender
bebidas alcoólicas se também servissem comida. Alexandre III morreu de
pneumonia em 1894, e seu filho Nicolau II deu passos mais largos rumo à
centralização do comércio alcoólico. Em 1895, com o intuito de controlar
a qualidade e a quantidade de álcool no mercado, restituiu o monopólio,
o que, em um primeiro momento, rendeu bons frutos tanto para a saúde do
povo como para os cofres públicos.
Mas no século 20 a situação
se complicou para a família real. O país perdera a Guerra
Russo-Japonesa, em 1905, ano em que uma série de rebeliões se espalhou
pelo território. E o estigma da
vodca
não havia diminuído. Mais uma vez, a bebida atrapalhou o desempenho.
Generais japoneses reconheceram que algumas vitórias ocorreram graças ao
porre dos soldados russos. A posição do governo sobre o assunto gerava
controvérsia. Havia campanhas pela sobriedade, mas, como a
vodca
era a principal fonte de renda do governo, na prática o consumo era
estimulado. A pressão aumentou ano a ano. O país estava em crise, e
Nicolau II, desacreditado. Mas, com a Primeira Guerra Mundial, em 1914, o
povo voltou a se unir e apoiar o czar, que achava que a sobriedade era
de suma importância no conflito. Para mobilizar a população, ele
decretou a lei seca, a primeira do gênero na
história. O czar queria livrar a
Rússia do
vício.
E parecia que podia conseguir. "A população saiu da inércia bêbada para
a sobriedade da noite para o dia", registrou o jornal americano The New
York Times na época.
Os soldados ficaram prontos para a guerra
na metade do tempo previsto. A embriaguez pública era algo raro. A
criminalidade caiu. "Não se pode escrever sobre a mobilização russa ou o
rejuvenescimento do império sem falar da proibição da
vodca",
disse o jornal inglês Times em 1915. "De um só golpe, libertou-se da
maldição que paralisou a vida dos camponeses por gerações. Isso em si
não é nada menos que uma revolução."
Entretanto, a proibição
teve consequências nefastas. Os soldados estavam despreparados, havia
poucos suprimentos. "A lei seca significou que o Estado perdeu um terço
do orçamento, resultando em falta de botas e fuzis [no front]", lembra
Patricia Herlihy, historiadora da universidade Brown, nos EUA, e autora
de The Alcoholic Empire (inédito em português). Para tentar acelerar a
economia, o governo imprimiu mais dinheiro, o que causou hiperinflação e
mais descontentamento. "A defasada infraestrutura ferroviária
dificultou o transporte de grãos para o norte. A produção de samogon,
uma
vodca
ilícita [e muito mais prejudicial à saúde], cresceu. A falta de pão em
São Petersburgo [Petrogrado à época] desencadeou a rebelião de mulheres,
que tiveram apoio de soldados e estudantes para pedir a abdicação de
Nicolau II", diz. Somem-se a isso um frio de -40 ºC no inverno e anos de
descontentamento. "Há relação entre a proibição e a queda do czarismo",
afirma. O cientista político americano Mark Schrad, autor de The
Political Power of Bad Ideas (inédito em português), concorda. "Os
tesouros mais cobiçados do Palácio de Inverno não eram os quadros na
parede, mas as adegas imperiais", diz. A era dos czares acabou em 1917.
"O quebrado governo bolchevique cogitou vender o estoque de
vodca no estrangeiro, mas optou por destruí-lo para evitar insurreições bêbadas", diz Schrad. A
vodca tinha criado um
vício econômico que ajudou a derrubar o regime czarista. Mas o estigma social perdurava.
CONTRARREVOLUÇÃO
Os líderes da Revolução Russa condenavam o álcool e mantiveram a lei seca. Produção e venda ilegais de
vodca
eram crimes graves. Mas, em 1924, o estado soviético retomou a
produção, dando início a uma nova era de monopólio. Na década de 1930, o
líder soviético Josef Stálin mudou a postura anti
álcool
com objetivos políticos. Aumentou a produção e permitiu um consumo
maior na camada da sociedade mais crítica a ele: artistas, jornalistas,
arquitetos e outros profissionais liberais. "Com a ajuda do álcool,
tentavam cortar a língua de críticos em potencial", escreveu o
historiador russo W. V. Pokhlióbkin no livro Uma
História da
Vodca.
O governo conseguiu razoavelmente controlar o mal do alcoolismo nos
primeiros anos do regime soviético. Mas aí veio a Segunda Guerra
Mundial.
Em 1943, após a vitória sobre os nazistas na batalha de Stalingrado, o Exército Vermelho passou a dar uma ração diária de
vodca
aos soldados. No começo, quem não bebia podia optar por chocolate, mas
em 1945 o hábito de beber voltou a ser tão comum entre as tropas que
recusar a dose podia ser visto como insubordinação. "Toda a população
masculina ativa da União Soviética estava no Exército", lembra
Pokhlióbkin. Assim, o hábito de beber costumeiramente voltou com tudo.
"Em meados da década de 1960, a embriaguez no serviço se tornou um
fenômeno cotidiano", escreveu.
DÉJÀ VU
Uma das primeiras medidas de Mikhail Gorbachev quando assumiu o poder, em 1985, foi lançar uma forte campanha anti
álcool. O problema, segundo os críticos, é que a medida mirou a produção de
vodca, e não a questão de saúde pública. Fazendas foram dissolvidas e destilarias, quebradas. Mas a
vodca
ainda era monopólio estatal. Se há campanha contra a produção e o
consumo, a renda do produto na forma de impostos, responsável por um
quarto do orçamento, cai. Foi o que aconteceu. Novo fracasso contra o
álcool. A produção de samogon voltou a crescer, detonando a saúde da
população. "Na mesma época, o preço de outro produto-chave dos
soviéticos entrou em colapso: o do petróleo", diz Schrad. Assim como 70
anos antes, imprimiram mais dinheiro, geraram uma nova superinflação e
aceleraram o fim da URSS.
Hoje a
vodca não tem um papel tão central na economia do país, representando de 2 a 5% do orçamento. "Além disso, na atual campanha anti
álcool
de Medvedev, parece que os russos aprenderam que práticas culturais não
podem mudar simplesmente com medidas de choque", opina Schrad. "A
classe média tem trocado
vodca
por vinho", diz Herlihy. "Algumas atitudes estão mudando. Mas aumentar o
preço não resolve o problema. Só vai fazer com que as pessoas voltem ao
samogon ou a qualquer coisa com álcool, como fluido de refrigerador."
O monopólio sobreviveu ao fim da URSS. Boris Yeltsin tentou, mas não conseguiu, acabar com ele. Nem a
Rússia
nem o presidente venceram a dependência do álcool. As bebedeiras de
Yeltsin, morto em 2007, eram tão famosas que seu antigo chefe de
segurança precisou negar uma afirmação feita em 2009 pelo ex-presidente
americano Bill Clinton. Segundo Clinton, em 1995, Yeltsin, em visita
oficial a Washington, foi visto de madrugada na rua, próximo à Casa
Branca. Ele procurava por pizza. De cueca. Bêbado.