De Evita Peron a Papa Francisco

quarta-feira, 27 de março de 2013


Recente conclave cria terreno fértil para que se discuta o cenário de instabilidade política e social evidenciado pela constante volta a um passado mítico, na Argentina, hoje.

“Precisamos evitar a doença espiritual de uma igreja encerrada em seu próprio mundo”, disse o papa Francisco, ao assumir o pontificado, na semana passada. Assim como tudo o que diz respeito à Igreja, os critérios pelos quais são escolhidos os papas também estão envolvidos pela aura de mistério que reforça a proliferação de uma narrativa mítica, e da sedução exercida por um personagem com a força alcançada por Jesus Cristo. Mas, desde a Reforma Protestante no século XVI, podemos nos sentir à vontade para interpretar livremente a história da fé cristã. Além disso, como o Brasil já não figura mais como país de hegemonia católica, outras e novas perspectivas sobre o poder da Igreja podem ser discutidas sem cair na armadilha da oposição entre verdade e mentira.
O fato é que o diagnóstico sugerido pelo novo pontífice para o mundo espiritual - do qual acaba de se tornar o maior responsável - acompanha perfeitamente a experiência política vivida pela Argentina desde o fim da última ditadura, em 1983. A dificuldade em sintonizar a imagem que os argentinos têm de si mesmos, e aquela pela qual são vistos do lado de fora parece levá-los a um esforço constante e cada vez mais deslocado de projeção internacional pela via de um passado cristalizado que internamente parece mobilizar parte da população, mas que do lado de fora cheira a um teatralismo ideologizado e dramático, possivelmente exemplificado pelas sucessivas homenagens feitas a Eva Perón.

Fascínio pelo passado
O historiador Paulo Renato da Silva sugeriu em artigo publicado na Revista de História que “um desenho animado sobre Eva Perón foi lançado poucos dias antes da reeleição de Cristina Kirchner como presidente da Argentina, em 2011, cartões-postais com as imagens do casal Juan e Evita são facilmente encontrados na capital, Buenos Aires, e o túmulo de Evita no Cemitério da Recoleta é um dos pontos turísticos mais visitados da cidade. Em Caminito, outro ponto turístico importante, estátuas da ex-primeira-dama decoram as sacadas de algumas casas, ao lado de imagens de outros argentinos famosos, como Maradona e Che Guevara”.
Outra obsessão da política argentina tem sido a chamada Questão Malvinas: “contraproducente e escravizadora da nação, tal qual o crente hiperortodoxo a quem foi necessário explicar que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado”, afirmou em 2003 o também historiador Vicente Palermo. Vivendo dessas memórias, o país parece não conseguir se descolar de imagens nacionalistas de si produzidas, porém, em outros contextos e retomadas como prática política sempre que se torna necessário esconder a situação presente.
A despeito de uma historiografia crítica e produtiva e de um debate acadêmico igualmente comprometido com a complexidade da história argentina e de sua conjuntura atual, sociedade e política parecem campos anestesiados desde a redemocratização, e blindados a opção de rever as questões que foram se tornando únicas zonas de conforto e segurança em tempos de “instabilidade perpétua”. Nesse quadro, o papa argentino faz todo o sentido: mobiliza a população, aflora nacionalismos em um campo menos explorado, repete protocolos em meio a eventos de massa, e pouco ou nada influencia nos rumos nacionais.
 
Papa argentino
“Humilde”. Assim tem sido definido o primeiro Papa latino americano da história pela grande imprensa brasileira. Especula-se que a vontade de ser chamado Francisco seria um pedido de benção a São Francisco de Assis, “o santo dos pobres”. E foi com euforia que o mundo parece ter recebido a declaração de que os cardeais foram “ao fim do mundo buscar um novo Pontífice” em seu primeiro pronunciamento. Preserva-se aqui uma antiga roupagem vestida à força uma vez pelas nações de passado colonial, mas tantas outras espontaneamente como agora. Não se trata de não ser humilde, por favor, mas é preciso não confundir um legado de desigualdades e injustiças sociais profundas com uma herança epistemológica que criou por aqui um modelo de desenvolvimento que nos cega para possibilidades de nos compreender e de compreender o mundo a partir de um pensamento próprio, com sua lógica particular e seus diferentes códigos nascidos, talvez, das “interculturalidades” e do diálogo de saberes que nos formaram.
Mas, ao contrário, não apenas nos inserimos em uma ordem mundial e moderna da maneira desejada e vista como a única possível, como, ainda hoje, praticamos internamente as tensões de uma colonialidade como forma de viver através do compromisso cada vez mais forte com a “política da diferença”, das minorias, como se esta fosse a forma mais natural, avançada e, por que não, humilde, de existir.
Mas, como todo ser humano, o novo papa também tem seu lado sombrio e foi acusado mais de uma vez de envolvimento pessoal e direto com crimes cometidos durante a ditadura argentina, entre os quais o assassinato de padres e o sequestro de bebês. Não apenas na terra natal de Bergoglio, mas no Chile, na Argentina, e por onde os golpes militares e civis-militares anticomunistas passaram, a Igreja esteve envolvida com a instauração de ditaduras na América Latina. Houve os que apoiaram abertamente, outros se omitiram e assim como na sociedade civil e na grande imprensa, múltiplas frações de “zonas cinzentas”, ambíguas, foram se adaptando à situação, pactuando ou negociando a melhor forma possível de sobrevivência. Cobrar do papa atitude revolucionária é o mesmo que enfatizar o seu conservadorismo.